Secretaria da Segurança Pública identificou saques, roubos e furtos em áreas alagadas, crimes em abrigos e golpes relacionados às enchentes. Mais de 2,3 milhões de moradores do Estado foram afetados pelas cheias e temporais, que mataram 155 pessoas
As cheias que afetaram 2,3 milhões de gaúchos despertaram a solidariedade de muitos brasileiros, mas também deixaram à mostra o cenário de insegurança comum em boa parte do país. Desde o início da tragédia, que deixou 155 mortos, as polícias do Rio Grande do Sul prenderam 130 pessoas por crimes em meio ao contexto das enchentes.
Do total de presos, 48 foram por crimes patrimoniais, como roubos e furtos de pessoas afetadas pelos temporais, afirma a Secretaria da Segurança Pública (SSP). Outras 49 pessoas foram detidas em abrigos. Não há o detalhamento das demais prisões.
No Vale do Taquari, uma das regiões mais castigadas pela tragédia, uma família sofreu tanto com a cheia quanto com a criminalidade. O roubo em uma loja em Arroio do Meio foi relatado pela empresária Marinez Silva Hauenstein em um vídeo que viralizou nas redes sociais.
— Olha só o que eles fizeram com a nossa loja de Arroio do Meio. Roubaram, entraram nela. Roubaram tudo. Porque, quando se encontra uma porta chaveada – e ela tá chaveada –, não é saque, é roubo — falou no vídeo.
Marinez e o marido têm cinco lojas de variedades (vendem alimentos, bebidas, itens de bazar, roupas, entre outros) em quatro cidades da região. Além de dois estabelecimentos em Arroio do Meio, eles também trabalham em Estrela, Cruzeiro do Sul e Lajeado.
— Quatro lojas foram praticamente consumidas pela água, onde a gente perdeu praticamente tudo. E uma loja, que seria a loja do nosso recomeço, a loja onde a gente poderia continuar, simplesmente a gente teve ela roubada por completo — diz a empresária ao g1.
A família estima que 20 mil itens foram levados, totalizando um prejuízo de R$ 2 milhões. Marinez só deparou com os estragos alguns dias depois, ao conseguir voltar para Arroio do Meio, depois que as águas baixaram.
— Isso é muito revoltante, é muito triste. Porque a gente é honesto, a gente é trabalhador — desabafa.
Marinez afirma que precisou dispensar parte dos funcionários e dar férias para outros, por não ter condições de reerguer as lojas.
— Isso pra gente é muito triste, porque eu sei que muitas dessas pessoas contavam com trabalho, contavam com emprego, e não puderam retornar pro seu trabalho por culpa de pessoas maldosas que fizeram o que fizeram dentro da nossa loja — lamenta a empresária.
A lojista afirma que registrou boletim de ocorrência sobre o caso. O g1 não conseguiu contato com a Delegacia de Polícia Civil de Arroio do Meio.
Os saques representaram "o pior momento na área da segurança pública", afirma o comandante-geral da Brigada Militar (BM), coronel Claudio dos Santos Feoli. Os crimes ocorreram no momento em que muitas cidades estavam alagadas e isoladas, impedindo o acesso rápido da polícia.
Para o comandante da polícia militar gaúcha, a situação foi mais complicada em Eldorado do Sul, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Não era possível chegar na cidade nem pela BR-290, nem pelas águas do Rio Jacuí e do Lago Guaíba, nem por helicóptero.
— Nós não tínhamos condições de colocar o policiamento lá. O que foi subtraído, naquele primeiro momento, está sendo recuperado e as pessoas estão sendo presas — diz Feoli.
Até agora, a BM prendeu oito pessoas por crimes em Eldorado do Sul. A polícia recuperou eletrodomésticos como televisores, geladeiras e fogões furtados. Os agentes também devolveram, ao dono de uma revenda, 10 tratores que haviam sido furtados por criminosos no município.
A BM conta com um efetivo de 17,8 mil policiais. Para reforçar a segurança, a corporação suspendeu as férias e reduziu os intervalos de escala dos agentes. Com um apoio de 700 soldados de outros estados, a polícia gaúcha consegue colocar em trabalho de 6,5 mil a 7 mil PMs por dia no estado. Além disso, a Brigada Militar está com 70 barcos nas ruas – alagadas – das cidades do RS.
— Nós tivemos que colocar tudo que tínhamos de embarcações, que eram do policiamento ambiental. Colocamos para o patrulhamento nas ruas, substituindo as viaturas — afirma o comandante Feoli.
Também na Região Metropolitana, a personal trainer Patrícia Atkinson de Souza foi uma das vítimas dos crimes de furto que ocorrem no Estado. Moradora de Montenegro, ela revela que saiu da residência onde morava com o namorado no dia 30 de abril, por causa da cheia do Rio Caí, que invadiu a cidade.
No dia 4 de maio, eles voltaram à casa, com o nível da água mais baixo, e perceberam que o muro em frente ao imóvel estava derrubado, o que levantou dúvidas sobre uma suposta força da água. Ao entrar, além de encontrar um cenário caótico de sujeira, o casal percebeu a falta da geladeira e da máquina de lavar roupas.
— A gente já está afetado por toda a situação. Tu sabe que vai precisar dos outros para te reerguer e acontece isso, sabe, é uma perda de fé. Parece que está dando tudo errado e aquilo faz tu perder a fé completamente de que tu vai conseguir dar a volta por cima ou qualquer coisa do tipo — revela a mulher.
No dia 10 de maio, o governo do estado anunciou o reforço da segurança em abrigos, que hoje atendem 77 mil pessoas. Naquela ocasião, havia o registro de crimes – inclusive sexuais – dentro dos locais que recebiam quem estava longe de casa. Para a Brigada Militar, esse foi o segundo momento de maior atenção no trabalho durante a tragédia.
A diretora da Delegacia de Polícia Metropolitana, delegada Adriana Regina da Costa, explica que as equipes da Polícia Civil fazem rondas nos abrigos. Até agora, 49 pessoas foram presas por ocorrências nesses locais.
— A gente está focando nos abrigos, com tem equipes fixas e rondas diárias — diz.
O trabalho é discreto, para não atrapalhar a ação dos agentes. Por esse motivo, as autoridades também não detalham quais ocorrências foram identificadas nos abrigos.
A Polícia Civil do RS também percebeu a atuação do crime organizado nas últimas semanas. Na sexta-feira (17), pai e filho foram presos em flagrante por tráfico de drogas, em uma situação que já era monitorada pela 1ª Delegacia de Investigação do Narcotráfico (DIN) do Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc).
No entanto, os policiais descobriram que, além das drogas, os suspeitos estavam com diversas porções de alimento que seriam distribuídas para pessoas desabrigadas. Os itens estavam em uma residência no bairro Belém Velho, na Zona Sul de Porto Alegre.
— A apuração indica que os dois presos se aproveitaram da situação de calamidade para desviar itens que deveriam ser destinados a quem realmente necessita — afirma o delegado Gabriel Borges.
Em Santa Catarina, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) apreendeu 1 kg de crack e 52 kg de cocaína em um caminhão que levava doações para o Rio Grande do Sul. O motorista, de 33 anos, disse que a droga, que estava no estepe reserva do veículo, seria entregue em um posto de combustíveis, antes de descarregar o veículo com as doações. O homem foi preso em flagrante.
A Defesa Civil de Cascavel (PR), cidade que arrecadou as doações, disse em nota que o caminhão é particular e foi disponibilizado pelo dono para transportar as doações.
Na quarta-feira (15), o RBS Notícias mostrou a situação de Canoas, na Região Metropolitana, onde 70 mil imóveis ficaram debaixo d'água. Os moradores que tentam salvar o que restou convivem com o medo da criminalidade.
Na última semana, uma longa sequência de tiros foi gravada na região central do município, o terceiro maior do Estado, com 347 mil habitantes. Quem vive próximo a alguns pontos de alagamento relata que a situação tem sido frequente.
— Os moradores chegaram a contratar segurança armada, por nossa conta, porque não vem ninguém aqui na frente. O tiroteio, que nem esse vídeo aí, é toda a noite, toda a noite — diz um morador, que prefere não ser identificado.
Segundo o comandante da BM, coronel Feoli, a situação em Canoas é monitorada de perto pela polícia. Os militares contam com o apoio da tecnologia para identificar os criminosos.
— Nós colocamos todo tipo de apoio dos Batalhões de Operações Especiais, além do efetivo do Choque e do Ambiental. Nós estamos utilizando drones com sensores termais e infravermelhos e os óculos de visão noturna para identificar quem possa cometer algum delito — explica.
Também em Canoas, o voluntário paranaense José Carlos Antoncheski Jr. se viu vítima dos criminosos. Atuando na região há mais de uma semana, ele utilizava um barco para transportar bombeiros e policiais nos resgates a pessoas isoladas.
O empresário foi a um supermercado comprar donativos e, quando voltou ao estacionamento, percebeu que o barco havia sido furtado.
— Quando eu fui buscar a caminhonete pra carregar, só encontrei a caminhonete; a corrente e o cadeado estourados no chão, e o barco não estava mais lá — diz José.
Câmeras de monitoramento flagraram a saída de um carro puxando o barco do José. Voluntários se mobilizaram e conseguiram encontrar a embarcação. A Brigada Miliar conseguiu prender um suspeito pelo roubo.
Os criminosos também se aproveitam da tragédia para cometer crimes virtuais. Uma operação da Polícia Civil do RS em conjunto com a polícia de São Paulo prendeu três suspeitos de criar um site para arrecadar dinheiro, imitando a página oficial do governo gaúcho.
— Nós já apuramos mais de 50 casos, nós temos 25 inquéritos policiais instaurados e um deles é em relação ao estelionato virtual — relata a delegada Vanessa Pitrez, diretora do Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC).
O Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público (MP) conseguiu, na Justiça, o bloqueio de 18 perfis falsos que se passavam por autoridades ou entidades sociais para desviar doações.
— A investigação prossegue para identificar e responsabilizar criminalmente todos os envolvidos no desvio de dinheiro para doações às vítimas da enchente no estado — afirma o promotor de Justiça Diego Rosito de Vilas.
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