O som dos alarmes da Defesa Civil ecoava pelo bairro São Geraldo, em Porto Alegre, alertando que as águas estavam prestes a invadir ruas, comércios e indústrias da região. Restavam poucos momentos para os colaboradores deixarem a sede e o depósito da Gamasul Locações. Onde antes funcionavam as operações da empresa, agora havia 1,4m de água. No depósito, os equipamentos ficaram submersos por 2m de água.
Essa é uma das centenas de histórias de prejuízos, mas também de resiliência, vividas pelas empresas gaúchas durante as enchentes de maio de 2024, o maior desastre climático da história do estado – que deixou um rastro de destruição, 182 vidas perdidas e prejuízos estimados em R$ 12 bilhões, de acordo com Foto: Órion Filmes dados oficiais do sistema nacional de Defesa Civil.
Todos os equipamentos atingidos precisaram de reparos extensivos, desde componentes mecânicos, até eletrônicos, além de um esforço para restabelecer a logística a partir da filial em Xangri-lá. Para Francisco Reis, sócio-proprietário da Gamasul Locações, a imprevisibilidade foi o maior obstáculo. “Muitas vezes, o que tínhamos decidido pela manhã já não servia para o outro dia. Desde a primeira reunião de retomada, sempre enfatizamos que crise significa uma mudança súbita e, se algo mudou, devemos nos adaptar também. Todos os dias tínhamos reuniões de início e fim de trabalho, buscando entender quais os fatores alteraram o status quo para podermos traçar uma estratégia para logística e atendimento”, destaca Reis. Com estratégias dinâmicas, como organizar os consertos de equipamentos em terceirizados parceiros e manter, na medida do possível, o atendimento aos clientes, a empresa conseguiu retomar as operações em Porto Alegre em menos de uma semana após a água baixar. “Hoje, estamos focados na operação e ainda no restabelecimento da disponibilidade dos equipamentos que foram afetados, nos reerguendo frente a este desafio, com muita dedicação e foco”, afirma.
Empresas localizadas em áreas mais elevadas ou afastadas dos principais pontos de alagamento sentiram os efeitos colaterais do desastre. Problemas logísticos, interrupções no fornecimento de insumos, dificuldades de transporte e até a falta de energia elétrica e água afetaram significativamente suas operações.
Sediada em Santo Ângelo, a Minner sofreu impactos indiretos. As entregas nas áreas atingidas foram prejudicadas por rodovias interditadas, o que gerou atrasos no atendimento aos clientes, exigindo uma reestruturação temporária de rotas e métodos de envio. Mas é o aspecto humano da tragédia que Douglas Winter, diretor da companhia, ressalta: “vários colaboradores perderam bens materiais significativos, e muitos de nossos clientes perderam seus negócios e suas casas. Alguns colaboradores ficaram quase 60 dias sem poder retornar para suas residências devido aos danos e à inacessibilidade das áreas afetadas”.
De Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, a Plastifluor acompanhou a situação vivida por seus clientes e parceiros gaúchos. A empresa também enfrentou desafios significativos na logística. “A cada envio de mercadoria, consultávamos a transportadora para confirmar se as entregas poderiam ser realizadas. Também fizemos consultas diretas aos clientes que aguardavam o recebimento de nossos produtos”, comenta Eunice Blessa Ferreira, gerente administrativa de vendas.
O momento, contudo, revelou a força de superação de toda cadeia da construção civil. “A crise que passamos é a mudança brusca de como as coisas estão funcionando, e a passagem por ela depende de ações para minimizar perdas. Procure enxergar oportunidades, antecipe suas ações aos fatos e não menospreze qualquer tipo de auxílio. Busque, mesmo que na crise, auxiliar no possível outras pessoas”, é a mensagem que o sócio-proprietário Gamasul Locações gostaria de deixar para outros empreendedores e para as famílias que estão se refazendo.
O espírito de colaboração e solidariedade marcou a resposta das empresas durante e após a tragédia. Muitas participaram de campanhas solidárias, doando recursos e materiais de construção para ajudar a reerguer comunidades devastadas. Entre essas iniciativas está a campanha ReconstruSul.
Em meio às várias ações sociais que surgiram desde o início de maio, poucas se mantiveram tão resilientes quanto a campanha ReconstruSul, que permanece ativa na recuperação das áreas afetadas. Idealizada pela arquiteta e influenciadora digital Dudi Duarte, a iniciativa arrecada materiais de construção e móveis para auxiliar na reconstrução de lares e na revitalizaFoto: divulgação Arquiteta Carlem Dorigon ção das comunidades impactadas. A ReconstruSul é descrita como “a maior campanha independente de doação de material de construção para reconstruir o Sul”, e está coletando itens essenciais, como areia, cimento, canos, vasos sanitários, cubas, bancadas, portas, janelas, torneiras, revestimentos, móveis e eletrodomésticos em mais de 90 cidades brasileiras.
À frente da iniciativa, Dudi Duarte utiliza suas redes sociais para divulgar a ação e incentivar doações. Em seus conteúdos, ela explica que os materiais recebidos, sejam novos ou usados em bom estado, são triados e distribuídos por profissionais parceiros. Esses profissionais selecionam as famílias que receberão os recursos e asseguram que os materiais sejam alocados de forma adequada. Além dos arquitetos de vários estados envolvidos na arrecadação de doações, no Rio Grande do Sul a organização e a atuação na reconstrução têm o suporte das arquitetas Aline Vilela e Ándrea Tessaro, que atuam na região sul do estado; da arquiteta Sabrina Marques, no Vale do Paranhana; da designer de interiores Francini Mello, no Vale do Sinos; e da arquiteta Carlem Dorigon, no Vale do Taquari.
A Feira Construsul se uniu à campanha como apoiadora oficial. A parceria garantiu o transporte das doações arrecadadas em outros estados, assegurando que os materiais cheguem às comunidades atingidas. No dia 20 de maio, a primeira carreta de São Paulo, com 12 toneladas de itens, chegou a Lajeado, no Vale do Taquari.
O material foi recebido por Carlem Dorigon, arquiteta responsável pela gestão da iniciativa na região. “Moro próximo ao encontro dos Rios Forqueta e Taquari e vi meus vizinhos, amigos e clientes perderem tudo. A água chegou muito perto da minha casa e do meu escritório, o que nos forçou a evacuar devido ao risco de rompimento de barragens. Com sentimento de gratidão por não ter sido atingida pela devastação da catástrofe e com empatia a tantas famílias que foram, me senti no dever de fazer algo para ajudar a comunidade”, compartilha.
Quando teve acesso à luz e internet, viu a publicação de Dudi Duarte sobre a campanha e se voluntariou. A paulista colocou-a em contato com as demais profissionais gaúchas interessadas em contribuir para a ação. “A parte mais difícil foi decidir para quem entregar primeiramente os donativos, pois, ao meu redor, havia muita destruição e necessidade. Priorizamos então os idosos e as pessoas com comorbidades”, detalha Carlem.
Além de Taquari, o núcleo coordenado por Carlem atende pessoas afetadas em Cruzeiro do Sul, Estrela, Arroio do Meio, Canudos do Vale e Encantado. Um caso que a marcou Foto: divulgação A Feira Construsul fez a interação entre a campanha ReconstruSul e as indústrias profundamente foi o de uma senhora que, ao ser questionada sobre suas necessidades, disse que não tinha mais nada e que qualquer item recebido seria valioso neste momento. “Ela e seu marido estavam improvisando um abrigo em um quiosque de um familiar, com vedação improvisada com plásticos para barrar o vento e a chuva. Entendemos que se tratava de uma família que precisava de uma dose de esperança para seguir em frente”, recorda. Para reconstruir a casa de 40m², a família recebeu materiais de construção, louças e móveis.
A Feira Construsul mobilizou seus expositores fazendo a interação entre a campanha ReconstruSul e as indústrias interessadas em doar. Dentre os materiais, estavam alguns produtos da Minner, que, por meio de seus vendedores locais, contribuiu com insumos básicos, como 2 mil centos de parafusos brocantes para telhas, suficientes para cobrir quase 50 mil m², além de 2 mil cartuchos de Fixxer Multi, usados para colagem e vedação de mais de 20 mil metros lineares de calhas, aberturas e telhados. A empresa também disponibilizou 5 mil discos de corte, capazes de cortar mais de 70 mil metros de ferro. A distribuição foi facilitada pela TW Transportes, que realizou o transporte sem custo algum.
Douglas Winter, diretor da Minner, relata que recebeu inúmeros agradecimentos, tanto através de feedback direto aos seus vendedores, quanto pelas redes sociais. “Também observamos que clientes de outras localidades têm priorizado nossos produtos, reconhecendo e valorizando nosso esforço em ajudar diretamente os atingidos. A reconstrução do Rio Grande do Sul significa não apenas a recuperação das áreas afetadas, mas também a continuidade e a revitalização dos negócios e das cidades”, salienta.
A Plastifluor também contribuiu para que centenas de famílias pudessem se reerguer. Entre os itens doados estavam 1.020 unidades de fita veda rosca, 1.008 unidades de anel de vedação sanitário, 1.024 unidades de fita crepe e 1.020 unidades de fita isolante. A Transportadora Expresso São Paulo Lajeado, conhecida como Diretão São Paulo, realizou a entrega desses materiais sem cobrar o frete.
A TotalCAD se uniu à ReconstruSul, disponibilizando mais de 400 licenças temporárias gratuitas de seus softwares para empresas gaúchas e profissionais atingidos pelas inundações. “Nós percebemos que, após a fase emergencial de suprir as necessidades básicas como alimentação e abrigo, viria o desafio da reconstrução. Muitos clientes gaúchos perderam seus computadores e licenças de software, o que os deixou sem condições de retomar o trabalho e ajudar na reconstrução. Então, ampliamos nossa ação para além dos nossos clientes, oferecendo licenças temporárias para arquitetos e engenheiros que precisam de ferramentas para desenhar projetos, como o ZWCAD, essencial para a indústria, engenharia e arquitetura. Seguimos oferecendo essas licenças enquanto for útil, porque entendemos que é fundamental fortalecer o comércio e os serviços locais para que o Rio Grande do Sul possa se reerguer e recuperar sua força econômica”, explica José Augusto Silva, CEO da TotalCAD.
Apesar de ter oito de suas lojas afetadas pelas enchentes, a Redemac manteve seu compromisso com a comunidade. Entre suas doações, destaca-se a parceria com o fornecedor Imbralit, que resultou na entrega de mais de mil telhas para a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de Eldorado do Sul, o Rotary Club de Estrela e o projeto Reconstrusul. A entrega foi acompanhada pelo influencer gaúcho Diogo Elzinga. “Ao mesmo tempo que fomos fortemente assolados, estamos vivendo a reconstrução. É o momento de reconhecer a resiliência, que ‘não está morto quem peleia”, referência Caroline Morelli, presidente da rede.
No Vale dos Sinos, onde estão algumas das áreas mais atingidas pelas inundações, a designer de interiores Francini Mello é quem está coordenando as operações da Reconstrusul. Francini, que iniciou seu voluntariado em maio com a distribuição de marmitas, logo percebeu a necessidade urgente de uma resposta mais estruturada. “Ver o desespero das pessoas e ouvir suas histórias era assustador. Comecei com marmitas em 3 de maio e, ao perceber a gravidade da situação, entrei em contato com a arquiteta Dudi Duarte, de São Paulo. No mesmo dia, criamos um grupo no WhatsApp e, rapidamente, a campanha tomou forma”, conta.
Com o projeto ganhando proporções nacionais, Francini e sua equipe organizaram um formulário para que as famílias se cadastrassem, facilitando a triagem e a distribuição das doações. Inicialmente, enfrentaram empecilhos como estradas interditadas, mas usaram esse tempo para reunir o maior número possível de doações. Quando as estradas foram liberadas, começaram a receber as primeiras cargas de materiais e móveis. Até agosto, a designer de interiores recebeu 18 cargas e atendeu cerca de 100 famílias.
A cada dia atuando na campanha, Francini relata ouvir novas histórias de superação, como a de um morador de Campo Bom que seguiu residindo em sua casa, mesmo com a água tendo danificado parte do imóvel, além de seus móveis e eletrodomésticos. “Ele levou cerâmicas de diversos tipos. Quando questionado, apenas me disse o seguinte: não importa que seja uma peça de cada tipo, o importante é que teremos novamente a área e minhas paredes não pegarão mais chuva”, narra. Outro exemplo comovente é o de uma senhora que, apesar de perder sua cozinha comunitária para a água, acampou-se na casa da filha e continuou ajudando a comunidade.
Embora o caminho para a recuperação ainda se estenda à frente, a solidariedade e o apoio contínuos são essenciais para a reconstrução do estado. Cada contribuição, seja na forma de materiais, doações ou trabalho voluntário, motiva a seguir juntos.
Fonte: Revista Construsul, Ed 92, Outubro de 2024 (clique aqui